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"Quando o pássaro voa!" Uma carta de despedida.


Agora a pouco, antes de me recolher ao sono, estava a revisitar a página do Facebook, quando me deparei com uma live convidando-me para a Missa na intenção do 7° dia de falecimento de um amigo que há algum tempo lutava contra um câncer. Havia algum tempo que não nos falávamos. Fiquei chocado! Imediatamente busquei a caixa de mensagens para lembrar as últimas palavras que Paulo Silas me dirigiu:


"Pe. Bruno, tudo bem? Como andas as coisas? Sua benção! Estou bem graças a Deus. Mas como tomo medicação todos os dias, há efeitos colaterais. Mas melhorei perto do que estava no fim do ano passado. Tem que continuar na luta. Sem dúvida. Coloquei mais arquivos naquela pasta. Agora, são arquivos de histórias infantis narradas por Rubem Alves. Grande abraço."


A admiração pelos escritos de Rubem Alves era algo que nos mantinha misteriosamente próximos. Ele amava a poesia. Mesmo em dias de luta, perseguia seu desejo de ser padre. Faleceu durante o caminho. Chegou antes, aos 33 anos.


Antes de morrer, poeticamente, deixou algumas palavras, que tomo a liberdade de publicar. Nestes tempos difíceis e incompreensíveis, elas são bálsamo de reconciliação e gratidão a Deus por cada instante da vida.


“Quando o pássaro voa!


Queridos amigos que tanto amo, tomar a decisão de se colocar num papel palavras para serem compartilhadas nesta data foi uma das mais belas experiências que eu decidi fazê-la. Ter a consciência de que a finitude é algo humano e que o horizonte se aproxima, junto a velas e a remos e a gaivotas, me deixou com a perfeita exatidão de quão Deus foi bom para comigo, mesmo sabendo que, na maioria das minhas fragilidades humanas, eu não merecia tanta reciprocidade divina.


Desde quando descobri a grave enfermidade em 2016, nunca pensei em desistir e sempre confiei que tudo daria certo. E certamente os meus queridos amigos, junto com minha família maravilhosa, conseguiram testemunhar: afinal, como tudo deu certo, não!? Não sei se isso posso chamar de esperança ou fé. Eu simplesmente penso que Deus, na sua infinita bondade, decidiu que eu talvez merecesse, digamos, uma segunda chance. Não sei se fui merecedor suficientemente para isso. Muitas das vezes, creio que não. Estou certo que há pessoas mais santas e muito melhores para serem agraciadas nessa mesma proporção.


Lembro-me que, a caminho da minha primeira consulta no Instituto do Câncer, minha querida irmã virou para mim no carro, enquanto as lágrimas vertiam sobre o meu rosto, e sentenciou com uma voz delicada e doce: “Fique tranquilo que vai dar tudo certo”. E não é que sua frase foi profética.


Acho que fui um privilegiado. Eu, aqui, divagando sobre a vida para dizer algo às pessoas que eu amo. Alguns até poderão dizer: poderia ter dito tudo isso antes. Mas não..... a beleza mora no silêncio também. É preciso respeitar o silêncio, porque Deus também mora lá. O meu escritor favorito, Rubem Alves, fez o mesmo e, então, achei belo repetir o seu gesto. É bonito ter a possibilidade de nos despedirmos sem que possamos voltar atrás de algo. Percebi, portanto, que é cativante poder ter as últimas palavras a serem ditas. Afinal, uma música que não acaba, por melhor que ela seja, ficará entediante. Nós precisamos de um acorde final, para que tudo fique leve e flutue. Quero encerrar o meu espetáculo com a delicadeza de um jardim florido. Nada de tristeza porque, afinal, tenho a confiança na Vida Eterna e essa é somente uma passagem em que todos nós embarcaremos. Nos encontraremos para festejarmos na glória de Deus. Lá, voltaremos a ser criança e, aí sim, não queremos que o maestro dê o seu último acorde. Porque criança foi feita para eternidade!


Essa é arte da vida: inesperadamente, passamos a viver nas pessoas a qual nos relacionamos durante a nossa jornada. É ou não é uma espécie de imortalidade também? Seremos lembrados pelo que plantamos no nosso jardim.

Agora, podem ficar tranquilos, não terei mais muito o que dizer. Muitas das coisas que precisavam ser ditas já foram ditas em vida mesmo.


Tive experiências maravilhosas nesta caminhada. Li muitos livros, conheci muitas pessoas especiais, viajei a muitos lugares, tive uma vida sem desencargos de consciência, nunca deixei de dormir uma só noite por algo insólito que tenha feito, fui muitas vezes tolo, mas da tolice sempre nasceram coisas boas. Fui livre para amar e ser amado. O que mais poderia ter desejado? Mais nada. Durante minha jornada, a vida para mim foi bela, passeei pelo jardim ou melhor pelo Paraíso. E isso valeu a pena.


Ah...sobre a enfermidade. Ela foi dolorida, é claro. Nem tudo foi beleza. No entanto, o câncer me humanizou. Apreendi a lutar, a caminhar, a viver. Foi por meio do câncer que pude ver quanto fui amado e quanto poderia amar: os amigos, a vida, a família, a Deus. O câncer abriu meus olhos para mostrar que o mundo é um lugar maravilhoso e que devemos buscar a beleza, e a felicidade em todos os momentos de nossa vida, deixando que os olhos dos outros não nos afetem. Porque os nossos verdadeiros olhos não são os que dão visão para o dom de ver esteticamente o que nos rodeia, os nossos olhos reais ficam fixados no coração. É lá que enxergaremos a nossa verdadeira felicidade.

Sem querer me alongar. Termino, aqui, o que eu tinha a dizer – risos -, com um poema maravilhoso de Robert Frost que resume a minha caminhada nesta vida:


“Dois caminhos se separavam em um bosque amarelo, E, lamentando não poder seguir os dois, E sendo apenas um viajante, muito tempo eu fiquei parado E olhei um deles o mais distante que pude Até que se perdia na mata;

Então eu tomei o outro, como sendo o mais merecedor, E tendo talvez melhor direito, Porque estava gramado e queria ser usado; Embora os que por lá passaram Os tenham realmente percorrido de igual forma,

E ambos ficaram essa manhã Com folhas que passo nenhum pisou. Oh, guardei o primeiro para outro dia! Embora sabendo como um caminho leva para longe, Duvidasse que algum dia voltasse novamente.

Direi isto suspirando Em algum lugar, daqui a muito tempo: Dois caminhos se separavam em um bosque amarelo, e eu... Eu escolhi o menos percorrido E isso fez toda a diferença.”

Fiquem com Deus.

Até breve.


Paulo Silas Corte Fonseca


Poeticamente, me despeço de você, Paulo.

Até breve, até o encontro sem dor, com o nosso querido Rubem Alves, debaixo dos ipês amarelos.



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